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sábado, 18 de dezembro de 2010

Ligéia - Edgar Allan Poe - Parte 4

Disse que seu saber era tal como jamais conhecera em mulher alguma, mas onde existe o homem que tenha atravessado e com êxito, todas as vastas áreas da ciência moral, matemática? Eu não via então o que agora claramente os percebo, que os conhecimentos de Ligéia eram gigantescos, espantosos. Entretanto, estava suficientemente cônscio de sua infinita supremacia para resignar-me, com uma confiança de criança, a ser por ela guiado através do caótico mundo da investigação metafísica em que me achava acuradamente ocupado durante os primeiros anos de nosso casamento. Com que vasto triunfo, com que vivo deleite com que tamanha esperança etérea sentia eu - quando ela se curvava sobre mim, em meio de estudos tão pouco devassados, tão pouco conhecidos, alargar-se pouco a pouco, diante de mim aquela deliciosa perspectiva, ao longo de cuja via esplêndida e jamais palmilhada podia eu afinal seguir adiante até o termo de uma sabedoria por demais preciosa e divina para não ser proibida!

Quão pungente, então, deve ter sido o pesar com que, depois de alguns anos, vi minhas bem fundadas esperanças criarem asas por si mesmas e voarem além! Sem Ligéia, era apenas uma criança tateando no escuro. Sua presença, somente suas lições podiam tornar vivamente luminosos os muitos mistérios do transcendentalismo em que estávamos imersos. Privado do clarão radioso de seus olhos, aquela literatura leve e dourada tornava-se mais pesada e opaca do que o simples chumbo. E agora aqueles olhos brilhavam cada vez menos freqüentemente sobre as páginas que eu esquadrinhava. Ligéia adoeceu. Os olhos ardentes esbraseavam numa refulgência por demais esplendorosa; os pálidos dedos tomaram a transparência da morte e as veias azuis, na elevada fronte, intumesciam-se, e palpitavam, impetuosamente, aos influxos da mais leve emoção. Vi que ela ia morrer e, desesperadamente, travei combate em espírito com o horrendo Azrael. E os esforços daquela mulher apaixonada eram, com grande espanto meu, mais enérgicos mesmo do que os meus. Havia muito na sua severa natureza para fazer-me crer que, para ela, a morte chegaria sem terrores; mas assim não foi.

As palavras são impotentes para transmitir qualquer justa idéia da ferocidade de resistência com que ela batalhou contra a Morte. Eu gemia de angústia diante daquele lamentável espetáculo. Teria querido acalmá-la, teria querido persuadi-la, mas na intensidade de seu feroz desejo de viver, de viver, nada mais que viver, todos os alívios e razões teriam sido o cúmulo da loucura. Entretanto nem mesmo no derradeiro instante, entre as mais convulsivas contorções do seu espírito ardente, foi abalada a externa placidez de seu porte. Sua voz tornou-se mais suave, tornou-se mais grave, mas eu não queria confiar na significação estranha daquelas palavras, sossegadamente pronunciadas. Meu cérebro vacilava quando eu escutava extasiado por uma melodia sobre-humana, aquelas elevações e aspirações que os homens mortais jamais conheceram até então.

Que ela me amasse, não podia pô-lo em dúvida, e era-me fácil saber que, num peito como o seu, o amor não deveria ter reinado como uma paixão comum. Mas somente na morte é que compreendi toda a força de seu afeto. Durante longas horas, presas minhas mãos nas suas, derramava diante de mim a superabundância dum coração cuja devoção, mais do que apaixonada, atingia as raias da idolatria. Como tinha eu merecido a beatitude de ouvir tais confissões? Como tinha eu merecido a maldição de que minha me fosse roubada na hora mesma em que mais falta fazia? Mas sobre essa questão não posso suportar o demorar-me. Permiti-me apenas dizer que no abandono mais do que feminino de Ligéia a um amor, ai de mim!, inteiramente imerecido, concedido a quem era de todo indigno, eu afinal reconheci o princípio de sua saudade , com um desejo, tão avidamente selvagem, da vida que agora lhe fugia com tal rapidez. É essa violenta aspiração, essa ávida veemência do desejo da vida, apenas da vida, que não tenho poder para retratar, nem palavras capazes de exprimir.

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