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sábado, 18 de dezembro de 2010

Ligéia - Edgar Allan Poe - Parte 3

Não há caso, entre as numerosas anomalias incompreensíveis da ciência psicológica, mais emocionantemente excitante do que o fato - nunca, creio eu, observado nas escolas - de nos encontrarmos muitas vezes, em nossas tentativas de trazer à memória alguma coisa há muito tempo esquecida, justamente à borda da lembrança, sem poder, afinal, recordar. E assim, quantas vezes, na minha intensa análise dos olhos de Ligéia, senti aproximar-se o conhecimento completo de sua expressão!

Senti-o aproximar-se, e contudo não estava ainda senhor absoluto dele, e por fim desaparecia totalmente! E (estranho, oh, o estranho de todos os mistérios!) descobri nos objetos mais comuns do universo uma série de analogias para aquela expressão. Quero dizer que, depois da época em que a beleza de Ligéia passou para o meu espírito e nele se instalou como num relicário, eu deduzia de vários seres do mundo material, uma sensação idêntica a que me cercava e me penetrava sempre, quando seus grandes e luminosos olhos me fitavam.

Entretanto, nem por isso sou menos capaz de definir essa sensação, de analisá-la, ou mesmo de ter dela uma percepção integral. Reconheci-a, repito-o, algumas vezes no aspecto duma vinha rapidamente crescida, na contemplação de uma falena, duma borboleta, duma crisálida, duma corrente de água precipitosa. Senti-a no oceano, na queda dum meteoro. Senti-a nos olhares de pessoas extraordinariamente velhas. E há uma ou duas estrelas no céu (uma especialmente, uma estrela de sexta grandeza dupla e mutável, que se encontra perto da grande estrela da Lira) que, vistas pelo telescópio, me deram aquela sensação. Sentindo-me invadido por ela ao ouvir certos sons de instrumentos de corda e, não poucas vezes, ao ler certos trechos de livros. Entre numerosos outros exemplos, lembro-me de alguma coisa num de Joseph GlanvilI que (talvez simplesmente por causa de sua singularidade, quem sabe lá?) jamais deixou de inspirar-me a mesma sensação: "E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como seu vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de débil vontade."

Com o correr dos anos e graças a subseqüentes reflexões, consegui descobrir, realmente, certa ligação remota entre esta passagem do moralista inglês e parte do caráter de Ligéia. Uma intensidade , de pensamento, de ação ou de palavra era possivelmente nela resultado, ou pelo menos sinal, daquela gigantesca volição que, durante nossas longas relações, deixou de dar outras e mais imediatas provas de sua existência. De todas as mulheres que tenho conhecido, era ela, a aparentemente calma, a sempre tranqüila Ligéia, a mais violentamente presa dos tumultuosos abutres da paixão desenfreada.

E só podia eu formar uma estimativa daquela paixão pela miraculosa dilatação daqueles olhos que, ao mesmo tempo, me encantavam e atemorizavam, pela quase mágica melodia, pela modulação, pela clareza e placidez de sua voz bem grave e pela selvagem energia (tornada duplamente efetiva pelo contraste com sua maneira de emiti-las) das ardentes palavras que habitualmente pronunciava.

Falei do saber de Ligéia: era imenso, como jamais encontrei em mulher alguma. Era profundamente versada em línguas clássicas, e tão longe quanto iam meus próprios conhecimentos das modernas línguas européias, nunca a descobri em falta. E na verdade, em qualquer tema dos mais admirados, precisamente porque mais abstrusos da louvada erudição acadêmica, encontrei eu jamais Ligéía em falta? Quão singularmente, quão excitantemente, este único ponto da natureza de minha mulher havia, apenas neste último período, subjugado a minha atenção!

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