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sábado, 18 de dezembro de 2010

Ligéia - Edgar Allan Poe - Parte 9

Numa noite dos fins de setembro, chamou minha atenção, com insistência insólita, para o desagradável assunto. Ela acabava de despertar de um sono inquieto e eu estivera observando, com sentimentos mistos de ansiedade e vago terror, as contrações de sua fisionomia emagrecida. Sentei-me ao lado de seu leito de ébano, sobre uma das otomanas da Índia. Ela ergueu-se um pouco e falou num sussurro ansioso e baixo, de sons que ela então ouvia mas que eu não podia perceber. O vento corria com violência por trás das tapeçarias e eu tentei mostrar-lhe (o que, confesso, eu mesmo não podia acreditar inteiramente) que aqueles sopros, quase inarticulados, e aquelas oscilações muito suaves das figuras na parede eram apenas o efeito natural daquela corrente costumeira de vento. Mas um palor mortal, espalhando-se em sua face, demonstrou-me que os esforços para reanimá-la seriam infrutíferos. Ela parecia desmaiar, e nenhum criado poderia ouvir se eu chamasse.

Lembrei de onde fora guardado um frasco de vinho leve que os médicos haviam receitado e apressei-me em atravessar o quarto para ir buscá-lo. Mas, ao passar por sob a luz do turíbulo, duas circunstâncias de natureza impressionante me atraíram a atenção. Senti que coisa palpável, embora invisível, passara de leve junto de mim, e vi que jazia ali, sobre o tapete dourado, bem no meio do forte clarão lançado pelo turíbulo, uma sombra, uma sombra fraca, indecisa, de aspecto angélico, tal como o que se poderia imaginar ter a sombra de uma sombra. Mas eu estava desvairado pela excitação de uma dose imoderada de ópio e considerei essas coisas como nada, não falando delas a Rowena. Tendo encontrado o vinho, tornei a atravessar o quarto e enchi uma taça, que levei aos lábios da mulher desmaiada. Ela havia então, em parte, recuperado os sentidos, porém, e segurou o copo, enquanto eu me afundava numa otomana próxima, com os olhos presos à sua pessoa.

Sucedeu então que percebi distintamente um leve rumor de passos sobre o tapete e perto do leito, e um segundo depois, quando Rowena estava a erguer o vinho aos lábios, vi ou posso ter sonhado que vi, caírem dentro da taça, como vindos de fonte invisível na atmosfera do quarto, três ou quatro grandes gotas de um líquido brilhante, cor de rubi. Se eu o vi, não o viu Rowena. Bebeu o vinho sem hesitar e eu contive-me de de falar-lhe de uma circunstância que, julguei, devia, afinal de contas, ter sido apenas a sugestão de uma imaginação viva, tornada morbidamente ativa pelo ópio e pela hora da noite.

Não posso, contudo, ocultar de minha própria percepção que, imediatamente após a queda das gotas de rubi, uma rápida mudança para pior se verificou na enfermidade de minha mulher; assim que, na terceira noite subseqüente, as mãos de seus criados a preparavam para o túmulo, e na quarta, eu me sentei só, com seu corpo amortalhado, naquele quarto fantástico que a recebera como minha esposa. Fantásticas visões, geradas pelo ópio, esvoaçavam como sombras à minha frente. Contemplei com olhar inquieto a essa armada nos ângulos do quarto, as figuras oscilantes da tapeçaria e o enroscar-se das chamas multicoloridas do turíbulo, no alto.

Meus olhos então caíram, enquanto eu recordava as circunstâncias de uma noite anterior, sobre o lugar por baixo do clarão do turíbulo, onde eu vira os fracos traços da sombra. Ela, contudo, já não estava mais ali, e, respirando com maior liberdade, voltei a vista para a pálida e rígida figura que jazia no leito. Então precipitaram-se em mim milhares de recordações de Ligéia, e então recaiu-me no coração, com a violência turbulenta de uma torrente, o conjunto daquele indizível sentimento de desgraça com que eu a contemplara, a ela, amortalhada assim. A noite avançava e ainda, com o peito cheio de amargas lembranças dela, a única e supremamente amada, eu continuava a olhar o corpo de Rowena.

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